domingo, 27 de setembro de 2009

Desvios que a vida dá.

-É catapora. O médico disse. Nada de coçar, hein, ou ficará com as marcas para o resto da vida.

Para o menino de seis anos isto não era nada mau. Seria mais de uma semana em casa sem ter que ir à escola. Poderia ficar em casa e fazer uma das coisas que mais gostava: assistir a programas de animais na televisão.

Ao se levantar, bem cedo, assistia ao Mundo Animal sobre o Parque Nacional Kruger, na África do Sul. Depois era a vez do Daktari. Era um programa sobre um veterinário viúvo que tinha construído um hospital nos fundos de sua casa e cuidava de todos os animais que para ali eram trazidos. Ele tinha uma filha. No lugar também vivia um leão, Clarence, que por ser vesgo, não podia caçar e andava pela propriedade se comportando como um cão dócil. Daktari, na língua dos nativos do lugar, era “doutor”.

Depois deste programa, era hora do Tarzan. Flipper vinha em seguida.

De todas estas séries, Daktari realmente fascinava o menino. E de tão forte que ficou esta impressão, anos mais tarde ele se tornaria um veterinário também, com ênfase em animais silvestres.

Para estudar sobre um assunto que acenava com um futuro nada promissor dentre os ramos da profissão, andava com um raro livro de um “papa” sobre o assunto.

Após a graduação, o menino-homem foi trabalhar em um projeto de conservação e manejo de peixes-bois, numa ilha próxima de Recife, Itamaracá (do Tupi "pedra que canta" ou "pedra sonante"). Devido a problemas políticos da instituição, e depois de várias decepções com os “senhores” da fauna no país, o menino-homem resolveu largar a profissão e se dedicar a outra coisa que também gostava de fazer: estudar a língua estrangeira. Isto ele já fazia desde sua adolescência e se dedicaria a ela nos seus próximos anos.

Depois de algum tempo na nova profissão, foi chamado para ajudar um amigo dos tempos já idos da veterinária que iria trazer para um congresso no Brasil, um renomado veterinário de animais silvestres, um senhor perto de seus 80 anos. Ele faria o papel de intérprete e acompanharia o senhor durante sua estadia por aqui.

Depois de algumas viagens pelo interior de Minas, num mosteiro de padres da serra do Caraça, enquanto esperava o aparecimento do lobo-guará, o menino-homem quis saber como aquele senhor tinha se enveredado neste ramo. O que o tinha motivado a ser o que ele era.

-Eu fui criado em uma fazenda no estado de Utah e mexia com eqüinos, a minha paixão- o senhor explicou. Num dia, enquanto eu trabalhava em um haras no sul da Califórnia, fui chamado para atender a uma zebra que não estava bem num set de filmagem de um estúdio. Depois, uma girafa. Eu não sabia nada de zebras e nem de girafas, mas fui até o lugar onde eles estavam filmando uma série de TV. Fui ficando e acabei por me especializar em animais silvestres e a formar o primeiro curso sobre esta disciplina no mundo.

E durante a conversa, o menino-homem soube que estava diante do verdadeiro veterinário que cuidava dos animais da série Daktari. Ele tinha, diante de si, o verdadeiro profissional que o incentivara e marcara sua vida, desde os tempos de recuperação da catapora.

Mas o que os aproximou não tinha sido a veterinária, mas o inglês, a língua do estrangeiro.

E o menino-homem,sou eu.

domingo, 13 de setembro de 2009

Casamentos Possíveis

UMA DAS boas razões para se casar é a seguinte: uma vez casados, podemos culpar o casal por boa parte de nossas covardias e impotências.
O marido, por exemplo, pode responsabilizar mulher, filhos e casamento por ele ter desistido de ser o aventureiro que ainda dorme, inquieto, em seu peito. A decepção consigo mesmo é menos amarga quando é transformada em acusação: "Você está me impedindo de alcançar o que eu não tenho a coragem de querer".
Essas recriminações, que disfarçam nossos fracassos, não são unicamente masculinas.
Certo, os homens são quase sempre assombrados por impossíveis devaneios de grandeza -como se algum destino extraordinário e inalcançável já tivesse sido sonhado para eles (e foi mesmo, geralmente pelas suas mães). Diante de tamanha expectativa, é cômodo alegar que o casal foi o impedimento.
As mulheres, inversamente, seriam mais pé-no-chão, capazes de achar graça nas serventias do cotidiano. Por isso mesmo, aliás, elas encarnariam facilmente, para os homens, os limites que a realidade impõe aos sonhos que eles não têm a ousadia de realizar.
Agora, as mulheres também sonham. Há a dona de casa que acusa o marido, os filhos e o casamento por ela ter desistido de outra vida (eventualmente, profissional), que teria sido fonte de maiores alegrias. E há, sobre tudo, para muitas mulheres, um sonho romântico de amor avassalador e irresistível, do qual, justamente, elas desistem por causa de marido, filhos e casamento.
Com isso, d. Quixote se queixa de que sua mulher esconde seus livros de cavalaria e o impede de sair à cata de moinhos de vento. E Madame Bovary se queixa de que seu marido esconde seus livros de amor e a impede de sair pelos bailes, à cata de paixões sublimes e elegantes.
Pena que raramente eles consigam ter os mesmos sonhos. Um problema é que os sonhos dos homens podem ser de conquista, mas dificilmente de amor, pois eles derivam diretamente das esperanças que as mães depositam em seus filhos, e, claro, uma mãe pode esperar que seu rebento varão seja um dom-juan, mas raramente esperará ser substituída por outra mulher no coração do filho.
Não pense que esse fogo cruzado de acusações seja causa recorrente de divórcio. Ao contrário, ele faz a força do casamento, pois, atrás da acusação ("É por sua causa que deixei de realizar meus sonhos"), ouve-se: "Ainda bem que você está aqui, do meu lado, fornecendo-me assim uma desculpa -sem você, eu teria de encarar a verdade, e a verdade é que eu mesmo não paro de trair meus próprios sonhos".
Ou seja, em geral, a gente casa com a pessoa "certa": a que podemos culpar por nossos fracassos. E essa, repito, não é uma razão para separar-se. Ao contrário, seria uma boa razão para ficar juntos.
Quando a coisa aperta, não é porque sonhos e devaneios teriam sido frustrados "por causa do outro", mas pelas "cobranças", que, elas sim, podem se revelar insuportáveis.
Um exemplo masculino. Uma mulher me permite acreditar que é por causa dela que eu não consigo ser o que quero: graças a Deus, não posso mais tentar minha sorte no garimpo agora que tenho esposa, filhos e tal. Até aqui, tudo bem. Como compensação pelos sonhos dos quais eu desisti, passo as tardes de domingo afogando num sofá e soltando foguetes quando meu time marca um gol, mas eis que, no meio do jogo, minha mulher me pede para brincar com as crianças ou para ir até à padaria e comprar o necessário para o café - logo a mim, que deveria estar explorando as fontes do Nilo ou negociando a paz entre os senhores da guerra da Somália.
Essa cobrança, aparentemente chata, poderia salvar-me da morosa constatação do fracasso de meus sonhos e das ninharias com as quais me consolo. Talvez, aliás, ela me ajudasse a encontrar prazer e satisfação na vida concreta, nos afetos cotidianos. Mas não é o que acontece: o que ouço é mais uma voz que confirma minha insuficiência.
À cobrança dos sonhos dos quais desisti acrescenta-se a cobrança de quem foi (ou é) "causa" de minha desistência e razão de meu "sacrifício": "Olhe só, mesmo assim, ela não está satisfeita comigo." Em suma, não presto, nunca, para mulher alguma -nem para a mãe que queria que eu fosse herói nem para a esposa para quem renunciei a ser herói. E a corda arrebenta.
O ideal seria aceitar que nosso par nos acuse de seus fracassos e, além disso, não lhe pedir nada. Difícil.

CONTARDO CALLIGARIS - Folha de São Paulo 10/09/09