terça-feira, 22 de março de 2011

Sobre como da morte brota a vida

"E O CADÁVER que você plantou no seu jardim, já começou a brotar? Pode ser que cada sepultura seja um jardim!"
Sou antropófago. Devoro livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros.
Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue.
É o caso do conto "O afogado mais bonito do mundo", de Gabriel Garcia Marques. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.
É sobre uma vila de pescadores perdida em um nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E naquela vila o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: "Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto...".
Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio profundo, até que outra voz foi ouvida. Outra mulher... "Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?"
E elas sorriram e olharam umas para as outras.
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?"
Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A estória termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Depois dos terremotos e tsunamis nosso mundo nunca mais será o mesmo...
Rubem Alves - Folha de SP de hoje.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Grandes e pequenos desejos.

OS ADOLESCENTES de hoje me parecem desejar de maneira tímida. Como já escrevi, surpreende-me que eles desejem pequeno.
De fato, poderia estender essa constatação aos adultos de hoje. Não que eles deixem de desejar (isso só acontece em raras depressões graves), mas há, aparentemente, uma preferência contemporânea generalizada pelos desejos pequenos. Cuidado: um desejo não é pequeno porque seu objeto seria pouco relevante.
Tomemos, por exemplo, "Maria está a fim de cerejas" e "Antônia quer o fim de todas as guerras". Será que o desejo de Antônia é grande e o de Maria pequeno? Nada disso.
Melhor nunca comparar desejos por sua suposta "nobreza" -até porque essa tal "nobreza" pode esconder motivações bem mais torpes do que uma saudável vontade de cerejas. Então, como diferenciar desejos grandes e pequenos?
Pois bem, há desejos fluidos, suscetíveis de infinitos deslizamentos, como se, de alguma forma, o objeto desejado fosse indiferente. Esses são desejos pequenos.
Por exemplo, estou a fim de uma calça nova. Entro na loja e o tamanho 39 está em falta. Olho ao redor de mim e acabo comprando duas camisas que não têm nada a ver com a calça que eu desejava.
Quero rever "Cisne Negro", mas a sessão está lotada; nenhum drama, compro ingresso para "Bruna Surfistinha" (incidentemente: me dei bem, amei o filme). Também posso querer o fim de todas as guerras e, ao ver na TV uma ação do Greenpeace, decidir que de agora em diante só me importa o destino das baleias. Nesse caso, por se revelar facilmente substituível, o fim de todas as guerras é um desejo pequeno.
Há um outro tipo de desejo, mais incômodo, que não admite a substituição. Quero circum-navegar a Terra de veleiro, quero vingar meu pai, quero produzir uma obra, construir um império, rezar em silêncio no deserto, comer cerejas a cada dia: se eles forem insubstituíveis, se sua insistência moldar nossa vida, esses desejos são grandes porque eles nos definem.
O desejo pequeno é ideal para uma sociedade que conta com o consumo para alimentar a produção e organizar as diferenças sociais. Desejos substituíveis garantem que a gente seja sempre levemente insatisfeito e levemente desejante, esvoaçando de objeto em objeto como uma abelha num campo de flores.
Quanto ao desejo grande, que já foi ideal dominante, ele é hoje raro na prática, mas (anúncio de uma mudança dos tempos?) a sedução que ele exerce está crescendo.
Como Mônica Waldvogel (no "Entre Aspas", da Globo News, na última quinta) e o crítico da Folha Inácio Araújo (na Ilustrada de domingo), reparei que a safra do Oscar deste ano é peculiar: quase todos os filmes indicados ilustram desejos grandes.
Estamos tão acostumados a desejar pequeno que desejar grande (e pagar o preço disso) nos parece ser um comportamento patológico (o cara enlouqueceu, está obcecado) ou, então, sinal de crise (os EUA devem estar muito mal se eles precisam idealizar esses heróis que desejam grande).
Penso o contrário: patológico é desejar pequeno. E, se os Estados Unidos estão gostando de heróis que sonham grande, talvez eles estejam saindo da futilidade dos anos 90: o sinal não seria de crise, mas de saída da crise.
Recentemente, vários leitores e leitoras me perguntaram por que não escrevi sobre "Cisne Negro", que (alguns notaram) é um prato cheio para um psicanalista. Pois é, amei o filme e concordo com a ideia do prato cheio, mas acontece que, no filme, o que me comoveu não foi tanto o desabrochar da loucura quanto o heroísmo do desejo de perfeição da protagonista -um desejo grande.
Falando em desejo grande, "Bruna Surfistinha", que estreou na última sexta, é outro exemplo. O filme de Marcus Baldini não é uma apologia nem uma crítica moralista da prostituição: é um filme sobre o difícil e tortuoso caminho de alguém que quis ser livre. É a história de um desejo grande.

Contardo Caligaris - Folha de São Paulo 3 de março 2011.