quinta-feira, 22 de outubro de 2009

domingo, 18 de outubro de 2009

Ela.

Ele tinha chegado à nova casa, alugada. Iria começar tudo de novo. Daqui para frente seria tudo diferente. Mas como isto seria possível, se ele fora tomado de assombro ao perceber que era inquilino da família do outro? Este, dez anos mais moço, tinha o surpreendido ao aparecer depois da negociação com os proprietários da casa. O outro era filho deles. Que coincidência!

Ele era observado pelo outro de maneira indireta. Enquanto ele tentava colocar a cabeça no lugar, o outro cantava alto, brincava com o seu cachorro (ele também já tinha tido um cachorro igual ao do outro), recebia amigos, sempre alardeando sua presença. Mais precisamente, demarcando território.

Ele assistia a tudo sem muito ter o que fazer. Algo muito parecido quando viu um pássaro ser atacado por um bando de outros pássaros. O pobre nem se mexia tanto, perdido em meio a uma revoada de pássaros que lhe bicavam as costas, tiravam-lhe as penas. Ele entendia a posição do pássaro ferido. Sentia compaixão por ele. Resignava-se, assim como o pobre coitado que não tinha muito como reagir. Ele, no íntimo, via como a vida tinha lhe pregado uma surpresa ao fazê-lo morar na casa do outro: aquele de quem, um dia, tinha lhe roubado ela, por meio das razões do coração.

Ele não sentia culpa por isso. Ele já tinha inclusive tentado explicar isso ao outro. Ao conhecer ela, ele não sabia do outro. Mas compreendia os motivos deste odiá-lo e usar sua posição, no momento superior, para retornar o desprezo guardado há muito tempo e que não tinha por onde escoar.

A família do outro o tratava bem. Ele via pessoas chegarem à casa dos proprietários, quase sempre em grupos, porque no local se realizava uma reunião espírita mediúnica em alguns dias da semana. Eram religiosos, os pais do outro.

Num dia de quermesse, ele saiu para dar uma volta no quarteirão e ver as festividades. As crianças estavam animadas com a diversão. Os quase adolescentes se juntavam em bandos e ficavam a paquerar. Ele tinha inveja deles. Eram jovens. Estavam descobrindo a delícia de se encontrar enamorado.

Enquanto caminhava, ele se lembrava da última conversa que tinha tido com o outro. Ele havia escutado toda a amargura guardada e que lhe era exposta. Aceitava aquele desprezo, aquela desilusão, aquela raiva, porque já tinha sentido a mesma coisa. Isto lhe era familiar. Sabia que aquele era o tempo de escutar o outro falar.

Quando ele chegou em casa, ele viu o outro com uma criança no colo. Era filho do irmão dele, que também estava presente. Sem poder acreditar no que via, percebeu o outro com os olhos marejados indo em sua direção, depois de deixar a criança com o irmão. Abriu os braços e o abraçou. O irmão observava ele e o outro juntos, se abraçando e soluçando entre lágrimas, antes contidas. Era como ver dois soldados que lutavam em lados opostos se encontrarem e reconhecerem que tinham sido vítimas de uma mesma batalha: ela.

O irmão dizia: “Viu como ele é gente boa!”

Ele pensava: Quantas vezes ela já havia também abraçado o outro?