quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Estranhamento

"Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu."
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Que saudade de mim.

Há uma meia dúzia de anos, eu fui roubado de mim. Virei refém de dois rapazes que andaram comigo em busca de dinheiro e me ameaçavam, a todo momento, me tirar de mim. Diziam que iria ser com um tiro só, o que me deixava um alívio imaginar que seria quase indolor o final daquelas horas.


Tentei, neste tempo todo, e de várias formas, dar a volta por cima. Em parte, acho que consegui. Mas o que ainda sinto é um sentimento de ser refém das coisas e às vezes, das pessoas, que me causa um afastamento dessas mesmas coisas e pessoas.


Como resultado disso, eu mudei muito e em vários sentidos, para melhor. Mas percebo que me perdi também um pouco. Aquele rapaz sofreu um réveillon incomum que causou mudanças profundas neste renascer. Foi um parto a fórceps.


E hoje, sem depressão, apenas uma constatação.


Ganhei vida nova, mas o nascimento deixou cicatrizes.


Onde estou?

Por onde anda minha risada,

minha alegria?

Onde está minha casa,

minha comida?

Onde deixei meus chinelos,

meu descanso?

Onde está meu corpo,

meu canto?

Onde deixei minha inocência,

meu descanso?

Por onde anda minha cama,

minha companhia?

Onde está minha cachorra,

minha dama?

Onde deixei minha esperança toda,

minha alforria?

Por onde anda meu olhar,

quem ele procura?

Onde está minha amnésia,

minha caricatura?

Onde deixei minha vida?

sábado, 26 de dezembro de 2009

Dia especial.

Eu nunca consegui entender as festas de fim de ano. Talvez influenciado por filmes de cinema e histórias emotivas contadas geralmente nesta época, sempre esperei que algo muito especial acontecesse nessas datas.

Portanto, já passei o Natal e o Réveillon em diferentes lugares: em casa, na casa de outros, no sitio, na praia, em boates, na rua, na cama sozinho, bem acompanhado, em outros países, num lugar onde não gostaria de estar, numa busca desse algo diferente.

Não que estas ocasiões sejam ruins, deprimentes, mas também não são o contrário, uma história de filme de cinema. A distância entre o real e a fantasia é bem grande.

E se eu pudesse ampliar esse pensamento, isso caberia para quase todas as datas comemorativas impostas pelo calendário. Quando eu pensei que seria uma data especial, esta se mostrou geralmente aquém do que eu imaginava.

Os momentos especiais na minha vida se deram quando eu menos esperava. A surpresa da chegada dos instantes que me mobilizaram se deram em datas comuns.

Dias significativos que marcaram a memória e que se recusam a ir embora.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Amizade.

A mesma palavra tem significados diferentes de acordo com o texto ou o discurso em que figura. A importância disso é capital, pois significa que, para interpretar uma palavra, precisamos nos debruçar sobre o contexto do qual ela faz parte ou escutar verdadeiramente quem a profere. Do contrário, não a entendemos. O ensinamento básico de Sigmund Freud é esse e bastaria para justificar a psicanálise, se isso ainda fosse necessário.

A maioria das pessoas, no entanto, não se dispõe a escutar. Poucos nascem com essa capacidade, que pode e precisa ser desenvolvida. Escutar é um ato generoso. Implica que eu deixe momentaneamente de falar e esteja aberto para o que o outro tem a dizer.

A escuta é a característica do psicanalista e também do verdadeiro amigo – que não impõe a sua presença, não diz o que não deve ser dito e, assim, faz com que a amizade floresça. Ou seja, o amigo sabe se conter, exercita-se na ética da contenção. Por isso, ele é de paz e a sua maneira de ser pode servir de modelo para todas as outras relações: marido e mulher, pais e filhos e irmãos.

O que o filósofo e historiador grego Xenofonte escreveu 2 400 anos atrás poderia ter sido escrito hoje: "Um bom amigo é o mais precioso de todos os bens. Está sempre pronto a auxiliar... Há homens, contudo, que investem toda a sua energia no cultivo de árvores, para colher frutos, e são negligentes com o amigo, o bem que mais frutifica". O amigo vê e ouve o que não somos capazes de ver nem ouvir. Assim sendo, pode fazer por nós o que não temos como fazer por nós mesmos. Como o analista, ele ilumina o caminho.

Ele sabe suspender o seu desejo para que o do outro se manifeste. O que ele mais quer é o acordo. Está menos interessado nos eventuais benefícios materiais que a amizade pode trazer do que no fortalecimento desta. Visa sobretudo ao contentamento do outro e não deve ser confundido com o cúmplice, que visa ao próprio interesse e se liga a alguém em função do que almeja alcançar.

O elo de cumplicidade tende a ser efêmero, enquanto o de amizade é para sempre. Em outras palavras, o amor dos amigos nunca é de agora, e sim para a vida inteira. Também por isso, há milênios a amizade inspira escritores, que se perguntam de que modo escolher um amigo, quais as características de um amigo verdadeiro e o que nós devemos a ele. Os escritores – os melhores, entre eles – sabem que a amizade nasce espontaneamente, mas só dará os seus melhores frutos se for cultivada.

Betty Milan- Revista Veja/23/12/09

domingo, 13 de dezembro de 2009

Esquisitices.

Enfim estava no meu novo apartamento. Espaçoso, luminoso. Caberia e sobraria os móveis que eu tinha. Branco. Prazerosamente branco. Esses tipos de apartamentos antigos difíceis de encontrar hoje em dia.

Conversei com o porteiro e ele me deu uma informação geral de como as coisas funcionavam no condomínio: as regras. E claro, me informou quem eram meus vizinhos. Um deles, uma senhora de meia idade, reservava um canto em seu apartamento para guardar livros dos outros moradores. Todos tinham um lugar reservado para seus livros em seu lar. Ele me disse que ela os identificava com nomes dos seus proprietários. Ela formava, assim, uma biblioteca informal. Todos podiam ir lá, guardar seus pertences e pegar livros para ler. Tudo era cuidadosamente anotado.

No meio da primeira noite, acordei para tomar água e ir ao banheiro. Foi então que eu notei que a luz da sala estava acesa. Mas não me lembrava de tê-la deixado ligada. Surpreso, vejo que havia um mendigo dormindo em minha sala. Ele se encurvava para se proteger do vento frio que vinha da janela aberta. Ele e seu cachorro vira-lata. Fui até ele. Vi que havia uns papéis em cima da mesa de centro. Eram seus documentos. Ele tinha um nome, Estevão Cardoso Filho. Quis acordá-lo e dizer que ali não era sua casa, não era um lugar abandonado onde ele poderia dormir. Me perguntei como ele havia entrado lá, se isso seria um hábito, se já o haviam informado que havia um novo morador lá. Essas perguntas foram respondidas apenas no dia seguinte. O porteiro me disse que ele costumava fazer isso nas casas das pessoas. Ele era, de fato, um chaveiro e por isso tinha as cópias das chaves das casas que ele já atendera. Então, a cada dia, ele podia escolher em qual casa entrar, dormir e sair antes que o dono notasse sua presença. Seu lugar era no lugar dos outros.

Ao retornar para casa, depois de esclarecer minhas dúvidas, tive outra surpresa. Havia uma jovem mulher que usava meu telefone e falava sem parar. Quando ela me viu, veio logo se desculpando e afirmando que a imobiliária não a tinha dito que já tinham alugado o apartamento. Ela falava muito rápido enquanto se movimentava de um lado para o outro, de forma frenética, andando por todos os cômodos do lugar. E eu, sem notar, a seguia. Ao chegar à área de serviço, as grandes janelas me deixavam ver duas possíveis amigas conversando. Falavam de suas vidas íntimas. Problemas com namorados. E eu ali era apenas uma testemunha da vida dos outros, sem querer sê-lo. Me via obrigado a assistir a tudo. As janelas eram grandes, devassadas para o interior dos outros apartamentos.

E eu me peguei pensando: não é que eu estava gostando daquela esquisitice toda?

sábado, 12 de dezembro de 2009

Estresse.

Hoje está fazendo um ano que descobri que meu corpo me avisaria que eu não estava lá muito bem. Na tarde daquele dia de 2008, eu senti uma fisgada no olho e um tersol se formou no lugar. Este durou 6 meses para sarar. Um dia depois deste ir embora, outro tersol apareceu, no outro olho, que está aqui comigo até hoje. Há um mês, outro apareceu, no olho direito.

Para tentar tratá-los, fui a dois oftalmologistas, tomei TRÊS tipos de antibióticos, tive reação alérgica, fui à uma médica homeopata, cansei de buscar ajuda. Quando me olho no espelho, vejo os dois pontos nos meus olhos e me irrito. Estou começando a me cansar também.

A minha paciência está se esgotando. Hoje não acredito mais em quase nada. Na verdade, duvido que alguém saiba mesmo o que está fazendo. Uns talvez tenham mais idéia do que deve ser feito do que outras pessoas, mas me parece que é apenas uma questão de tentativa e erro. Certeza mesmo, ninguém tem, mesmo depois de anos e anos de experiência. O engraçado é fazerem uma cara e dizerem com uma segurança que sabem do que falam.

Como ainda trago no hábito de pensar que devemos aprender alguma coisa na vida, seja com as coisas boas ou tristes, cá estou querendo saber o que tudo isso quer dizer. O que devo aprender com isso. Atualmente, a única coisa que sei é da minha completa incompetência em gerenciar o meu tempo. Corro de lá para cá. Minha vida se dá no tique taque do relógio, do compromisso, dos deveres. Quando paro, sinto que esqueci de fazer alguma coisa. O corpo reclama da substância da qual ficou viciado: não ter tempo para mim mesmo.

Uma boa risada, daquelas que a barriga até dói, faz tempo.

Tenho saudades de muitas coisas que foram deixadas de lado por causa da rotina. Tenho preguiça de reinventar o meu modus vivendi.

Os dois pontos salientes nos meus olhos chamam a atenção das pessoas quando elas conversam comigo. Não sei se é uma forma inconsciente de fazer as pessoas olharem para mim, ou se serve para eu mudar os meus pontos de vista, meu modo de ver as coisas. Sei que estou impaciente. E muito.



"O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso." Mário Quintana.

Novos tempos.

Esbarro, sem querer, em minha aluna de 15 anos. Ela tira o braço rapidamente e faz uma careta de nojo e diz: Ai, fêssor.
Eu me desculpo. Ela continua: Não doeu não, mas é que você tem um braço cabeludo. Credo!
Atordodado com o comentário, eu respondo: Desculpa, mas eu sou do tempo em que homem tinha cabelo nos braços... e que as mulheres costumavam gostar.