domingo, 10 de maio de 2009

O quarto.

Meu pai desapareceu quando eu era criança. Num dia qualquer ele saiu sem se despedir e nunca mais voltou.

Minha mãe cuidou de nós, isto é, de mim e de minhas irmãs. Crescemos sem ele.

Eu me casei com uma mulher muito geniosa. Ela era do tipo que tinha as palavras certas para as horas certas. Minha mãe gostava dela. Em brigas e discussões, era do lado dela que minha mãe ficava.

E então a vida transcorria calmamente quando uma notícia surpreendente chegou até meus ouvidos: seu pai está aí!

Como assim? Como ele podia reaparecer se ele tinha , digamos, por assim dizer, morrido? Mas ele tinha voltado.

Depois de algum tempo de explicação, estranhamento e adaptação, a família estava, enfim, completa. Todos nós felizes de novo. Minha mãe tinha se readaptado ao ronco de um homem ao seu lado. Acredito que o que facilitou sua readaptação tenha sido um charme que ele ainda conservava. Havia envelhecido, mas para minha mãe continuava atraente.

Num dia qualquer, do qual eu já não me lembro, meu pai começou a fazer as mesmas coisas que ele fazia antes de desaparecer. Nós notávamos isso. E para não deixar mais que a situação se repetisse, decidimos trancá-lo no quarto. Minha mãe assistia a tudo sem dizer nada. Estava feliz em tê-lo ali, mesmo que trancado no quarto. Ainda mais porque desta vez, enquanto minha mulher fechava a porta, todos podiam ver meu pai desaparecendo de nossa vista, tendo ao seu lado, uma mala no chão. Sim, estávamos certos de que ele o faria se não fosse a decisão de trancá-lo no quarto.

Mais um dia se passou e encontramos minha mãe, na cozinha, olhando fixamente por cima da mesa, como se pensasse na vida, no que iria fazer... pensamento ao longe... inexpressivo.

Eu cheguei até ela e tive que me sentar ao ver que a porta do quarto estava aberta. Onde estavam as malas? O meu pai?

Alguém (já não me lembro direito) me explicou que assim que saímos, o meu pai tinha conseguido sair também. Ou talvez, minha mãe o tivesse ajudado. Eu não sabia o que pensar. Eu não podia acreditar.

Minha mãe olhou para mim e num gesto rápido, pegou uma lâmina de cortar papel que estava na mesa e veio para cima de mim. Ela queria me cortar e assim o fez, no meu ombro esquerdo. Graças às mãos que me protegiam eu tive um corte sim, mas de raspão. O sangue surgiu do risco em forma de filamento. Eu sabia que cortes não precisavam ser profundos para isso acontecer. Sabia que iria sangrar bastante, mas que iria estancar, sem precisar de pontos cirúrgicos.

Ela estava ali, olhando fixamente para mim, com a mão segurando a lâmina. E alguém segurando sua mão. Era certo que eu parecia com meu pai, mas ela estava descontando aquilo tudo em mim. Isto não era justo. Talvez, sendo eu seu único filho e não uma de suas filhas, ela transferia para mim o desejo de ter feito aquilo com meu pai.

Este que desaparecera. Mais uma vez. Deixando minha mãe sozinha na cozinha. Com uma lâmina na mão.

Nenhum comentário: